sábado, setembro 29, 2012

O texto a seguir foi publicado no livro "100 Retratos Brasileiros - Apaixonados por Carro", lançado em 2000. Escrito por Ruy Castro, o texto foi produzido especialmente para abertura deste livro.  Achei que deveria publica-lo  no blog, e assim,  colocar ao alcance de todos, e especialmente daqueles que não tiveram contato com o livro.

O Palco dos Sonhos   ( escrito por Ruy Castro)

Um dia, em 1903, o grande jornalista e tribuno José do Patrocínio, meio sem ter o que fazer no Rio de Janeiro, deu um pulo a Paris. Na volta, trouxe um carro.

Foi o primeiro automóvel no Rio uma furreca preta a vapor, que soltava rolos de fumaça  e os traques mais explosivos e constrangedores. Desembaraçado o carro no cais do porto, Patrocínio girou a manivela e entrou nele, de quepe e óculos e guarda-pó, sob aplausos e apupos da multidão.  À custa de vários desmaios e mortes do motor, atravessou a Rua Primeiro de Março a 10 km por hora e conseguiu levar seu carro até usa casa na Tijuca. Dias depois, convidou seu maior amigo, o poeta Olavo Billac, a dar uma volta. E Billac, peralta como ele só, também quis dirigir a geringonça.

O próprio Patrocínio mal sabia fazer o carro andar em linha reta, mas achava-se com ciência para instruir Billac.  Os dois passaram um por cima do outro no assento e trocaram de lugar. Patrocínio mostrou-lhe como dar a partida e Bilac, sem controle dos pés e das mão, pisou na tábua até o fundo, com o ímpeto de quem esmaga uma lacraia. O carro soltou dois ou três puns ribombantes, disparou em zigue-zague pela até então pacata aleia tijucana e, 100 metros adiante, achatou-se contra a única árvore da rua. Por milagre, nenhum dos dois se machucou e só o carro levou a breca.

Se Patrocínio aborreceu-se com Billac por este lhe ter escangalhado o carro, não passou recibo. Quanto a Billac, exibindo um galo na testa, adorou acrescentar o caso à sua mitologia particular. Vivia contando-o com minúcias aos amigos  na confeitaria Colombo. Na sua versão, a árvore que transformara o carro numa sanfona brotara de repente do chão, germinada  num átomo por Zeus, para impedir que ele, o Mercúrio do volante, vencesse os deuses da velocidade. Mas, dizia Billac, os deuses estavam com os dias contados: os automóveis eram os Pégasos modernos e,  um dia, seria possível a qualquer ir ao Olimpo de carro. E, quando isso acontecesse, todos se lembrariam: o primeiro acidente automobilístico no Brasil for a provocado por um poeta. E pelo poeta do “Ora (direis), ouvir estrelas”.

Billac foi profético, porque  quase 100 anos depois, ainda nos lembramos de sua façanha. Bem, não sou poeta, mas ninguém mais autorizado para escrever a apresentação deste belo livro – porque, como Billac, também não sei dirigir. Ele, pelo menos, tentou. Eu, nem isso.  Sou um dos poucos brasileiros acima dos 12 anos que nunca (eu disse nunca) pegaram um volante ou se sentaram no lugar do motorista.  Em consequência, também nunca girei uma ignição, pisei a embreagem ou passei de marcha. Da mesma forma, jamais, nem de brincadeira, disputei um pega, fiz curvas em duas rodas ou tirei finos em bebuns. Tenho passado uma vida privado desses prazeres que fazem de 99% da humanidade.

Por outro lado, isso me tem poupado também de uma série de aborrecimentos. Por exemplo: nunca perdi tempo procurando vagas para estacionar, nunca tive de me esfacelar em manobras e nunca me irritei por ter de andar em primeira e segunda em engarrafamentos. Igualmente, nunca fui multado, nunca tive o carro rebocado e muito menos roubado. Idem, Idem, nunca tive de emplacar um carro, nem mandar vistoriá-lo ou pagar um negócio chamado IPVA. Sei onde fica os Detran de várias cidades, mas apenas porque os motoristas de taxi adoram apontá-los para mim como se fossem a principal atração turística local.

Apesar disso, minha relação com o automóvel (ainda se  de chama automóvel?) está longe de ser zero. Ao contrario, há décadas vejo a vida passear lindamente pela janela do copiloto. Sem a responsabilidade da direção, posso me concentrar  na paisagem, de preferência feminina, pensar na morte da bezerra ou apenas zerar o Q.I. não pensando em absolutamente nada. Às vezes, numa simples corrida de taxi, meu Q.I. chega a profundezas tão abissais que o motorista tem de me despertar da catatonia quando chegamos ao destino.

Mas, até pelo contraste, posso entender a relação de amor entre o brasileiro e seu automóvel. Seja este qual for: banheira, fusca, fordeco, bugre, caminhão,  em suas infinitas variações de modelo, marca, cor, ano de fabricação ou tantos cavalos e cilindradas.

Para o brasileiro, o carro é o cenário de um sonho. Naquele palco, ele é o diretor, produtor, roteirista,  fotografo e protagonista de seus ideais e fantasias. O filme que passa em sua cabeça, enquanto seus olhos permanecem atentos a placas e sinais, não pode ser reproduzido em nenhuma tela de cinema (tem até trilha sonora, saindo do toca-fitas). E, neste filme sobre rodas, ele pode ser o herói, o galã, o vilão, o que quiser tudo em imaginação. Para o brasileiro, como queria Billac, o carro é o veículo para o Olimpo. Ou, talvez, o próprio Olimpo.

Ah, sim, há também quem use o carro para transportar-se materialmente de um ponto X a um ponto Y. Mas os que fazem isso estão reduzindo o carro a uma reles função utilitária, fora dos territórios do sonho. Por isso, eles não estão neste livro. Ainda não aprenderam que, quando se entra num carro, o importante não é chegar, mas ir. Em suma, ouvir estrelas.

 

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